22.3.20
carta da quarentena
honey,
os correios pararam, você sabe. não tem mais carta chegando-saindo, nem sei mais como me achegar a você, se ainda dá tempo. há uma outra cidade se desenhando, cheia de montes, portas, cercas vivas, areia movediça. algo de pantanoso também, sem deixar de ser poético e pastoso ao mesmo tempo. essa cidade do desenho a gente não conhece mais, é outra coisa, talvez nem ilha mais seja. parece mesmo é que estamos em um diorama, personagens estáticos em uma cena. ou será que nós estamos mudando junto, sem perceber o roçar os serrotes e a violência dos martelos? um braço virou tapete; outro, se fez carpete; as costas, um escritório; a cabeça, uma parede de drywall. queria ao menos virar jardim botânico, não essa alvenaria funcional, acho que só com gentes passeando por mim eu me sentiria menos só. não é assim que você se sente também, baby, apesar de toda essa fotografia hipster, desses elogios de fogo descendo das bocas até os pés? faz tempo que me perguntou, mas, sim, eu penso na hipótese de um cataclismo - apenas não era assim que eu fantasiava não, culpa de tanta poltrona de cinema, sessão só eu, nem te avisei (sabia que não ia querer, só importavam os poemas daquele cá entre nós, tanto que resmunguei baixinho um convite que nunca fiz, voltei da tua janela com dois tickets e um coração na mão). a culpa não é tão somente minha, não me ateste esta exclusividade: eu tentei uma vez falar sobre o assunto, estávamos num bar, os pés sujos na rua, aborreci você, me disse que eu dava palestrinha, ar professoral, distante. fiquei com um pouco de mágoa, virei um copo de cerveja morna, virei a cara. era minha filosofia do cataclismo que eu queria te contar, a história da massa crítica. vesti a roupa de volta porque o momento não dava para nudez de alma. então você tirou as luvas de pelica, deu um estalo no ar e arrematou: mais me preocupa salvar os meus, tem tantos querendo pular das janelas, e os prédios aqui são altos, você sabe, não sabe? desculpe não quero a filosofia, só quero os afetos, deixa de lado os escudos. fiquei em silêncio porque podia ser verdade isso que disse. pareceu pequeno o que fiz, mas quando você vestiu a poesia das ruas os olhos não mais se olhavam. foi tempo isso, antes desses carros da polícia circulando os bairros, dessas mensagens de 'voltem para suas casas', algo ostensivo, militar. ainda não há escombros, a cidade não está ruindo, mas mesmo que houvesse, não sei o que levaria primeiro. é difícil fazer algo com a espada de dâmocles na cabeça, ou faço como tu sem o saber: dramatizo trincos de portas. hoje, mesmo de sol alto, a cidade está escura. volta e meia vou até a sacada, pegar um ar, dá uma vontade de fumar, dá uma vontade de chorar olhando a metamorfose do mapa. não dá no seu peito também um engasgo, uma tontura, uma vontade de vomitar? eu tenho tudo isso se vejo uma pessoa caminhando sozinha, ou com um cachorro, ou outra pessoa triste, como eu, meio edward hopper, na janela do prédio em frente. faz tempo o correio parou, mas ainda escrevo carta. uma vaga esperança de que estas palavas te encontrem e bem.
31.7.19
os muros
my dear,
a grande verdade é que eu tinha sentido muito sua falta. no começo havia mentiras, mal e mal disfarçadas pelo semblante triste que faço caminhar pelas ruas desta cidade tisnada. havia uma porta escancarada no meu peito, uma angústia escarrada de ver você dormindo no meu leito. se não houvesse rimas seria melhor, não dá canção para a dor que já se sabe de cor. e o problema, o grande problema é que eu não posso contar nada disso pra mais ninguém. não há quem me suporte mais me ouvir falar em você: esvaziei a cidade de compaixão. então resolvi escrever, operar uma carta, riscando com bisturi esse corpo de texto. queria mesmo, ao contrário de tudo, poder odiar tudo o que fez aqui. mas não está habilitado no dispositivo interno qualquer pensamento contrário. fiquei pensando se sua fuga entre gazelas foi porque pensou que eu era uma pessoa rasa. talvez eu nem servisse para o salto, só para o molhar dos pés, em uma água que não produz batismos santos como as do jordão. foi você quem perdeu, pois não viu meu lado mais profundo, misterioso. resgato pequenas e bobas memórias. lembro das nossas conversas densas de honestidade. não havia assunto que não pudéssemos conversar. ainda lembro daquela rotina artificialmente construída: 1) você fritando um ovo e eu reclamando que estava overcooked; 2) você substituindo as lâmpadas de luz branca por lâmpadas amarelas, pois assim era mais acolhedor; 3) você contando lembranças de infância, todas marcadas por frutas e suave erotismo. também lembro do incêndio na sua casa, pequena tragédia que levou você até a minha casa por alguns dias. houve muita luz amarela com vinhos e beijos e histórias de cobertor. era como se tivéssemos tirado férias desse mundo obtuso lá de fora, com suas ruas rebatidas, umas asas de avião cheio de ranço e politicagem. mas depois você voltou para sua própria casa e tudo foi mudando, mudando. eu quis negociar novos incêndios, só não tive coragem de riscar um fósforo sequer. você foi minguando no telefone, decrescendo, tornando o áudio pequeno pequeno pequeno. depois, como quem opera linhas, cortou a ligação, sumiu no mundo, tipo faroeste, quando cortam as linhas do telégrafo. e eu, como aquelas mocinhas de filme, a sensação era de estar de atravessado nos trilhos de trem, com cordas bem fortes. eu gritava e gritava seu nome, mas você não vinha, só vinha o trem. e veio vindo vindo vindo vindo até que: em dois pedaços, eu fui. é, morador dos muros, eu tenho sentido a sua falta mesmo sabendo que você não sente mais a minha. mesmo com esse seu descarte sem cerimônia, sem responsabilidade afetiva, eu caí no buraco. sei que eu mesmo que tenho que me aguentar, pois a vida tem disso: às vezes surge alguém que a gente ama e não é para ser. sabe que, por incrível que pareça, a sua ausência me salva de ficar de cotovelos nos muros, lamentando. é estranho sim, mas dá para ser uma pessoa cortada ao meio, remendada de cordas. dá até para amar de novo. só não você, que não pretendo mais. só escrevi mesmo para reclamar uma última vez e enterrar de vez essa coisa ruim que sentia vir de onde era você e eu.
.:marcio markendorf après relato de jon jon
7.3.19
mercúrio retrógrado
my dear,
faz tanto tempo que não nos tocamos que as palavras trocaram de lugar. invertidas no sentido e na sintaxe, esconderam-se com receio das consequências. mas não eram investidas os recados deixados na secretária. pensei neles mais como delicadezas, pesa-papeis imateriais para não deixar as cartas com timbre voarem pela casa. pena que, por medo, os recados foram rasgados, nem chegaram a curtir e pegar sabor. eu não disse nada, apenas acenei com a cabeça, sem concordar. a intuição do mercúrio retrógrado já me dizia: era o nosso adeus. começaram as reformas pela casa. olhei pela última vez para lembrança daqueles dias de sol. todo o verão chegando trazendo mais histórias, avolumando uma trajetória que a gente pensava a dois. não deu certo por muitas razões, a gente sabe, as coisas do mundo nos imobilizavam. ninguém teve culpa, ninguém partiu, mas ficou a vontade da chegada a algum ponto. e, de repente, fomos nos separando, nos esquecendo, silenciando qualquer palavra pura. como mineradores cansados que abandonam uma mina, saímos sem nem levar as ferramentas. imagem triste do fim de um trabalho. ao mesmo tempo: a cena encarna a lembrança gloriosa de que, antes, encontrava-se ouro no olho da terra. os trabalhadores levantavam bem alto as peneiras e gritavam, gritavam quando olhavam no fundo uns dos outros. e era ouro pra mim, aquela canção. por fim, os calos arrebentaram, os músculos retesaram, as mãos abertas se soltaram fio a fio. a mina foi sendo deixada para trás, um lento e silencioso movimento retrógrado. então: vindo de lá, com as mãos abanando, recordando os papeis rasgados de agora, olho para trás como que pra frente. parece sem sentido o que digo, mas as palavras trocadas de lugar me deram esta liberdade. adeus, adeus, sou mais longe ainda daquele lugar temporário, o fundo do mundo onde nos encontrávamos. torna-se ouro preto o que eu cantava, torna-se o fim completo das minas gerais. restam tão só águas tranquilas, cheias de mercúrio, feridas embebidas em mercúrio-cromo.
.: marcio markendorf
faz tanto tempo que não nos tocamos que as palavras trocaram de lugar. invertidas no sentido e na sintaxe, esconderam-se com receio das consequências. mas não eram investidas os recados deixados na secretária. pensei neles mais como delicadezas, pesa-papeis imateriais para não deixar as cartas com timbre voarem pela casa. pena que, por medo, os recados foram rasgados, nem chegaram a curtir e pegar sabor. eu não disse nada, apenas acenei com a cabeça, sem concordar. a intuição do mercúrio retrógrado já me dizia: era o nosso adeus. começaram as reformas pela casa. olhei pela última vez para lembrança daqueles dias de sol. todo o verão chegando trazendo mais histórias, avolumando uma trajetória que a gente pensava a dois. não deu certo por muitas razões, a gente sabe, as coisas do mundo nos imobilizavam. ninguém teve culpa, ninguém partiu, mas ficou a vontade da chegada a algum ponto. e, de repente, fomos nos separando, nos esquecendo, silenciando qualquer palavra pura. como mineradores cansados que abandonam uma mina, saímos sem nem levar as ferramentas. imagem triste do fim de um trabalho. ao mesmo tempo: a cena encarna a lembrança gloriosa de que, antes, encontrava-se ouro no olho da terra. os trabalhadores levantavam bem alto as peneiras e gritavam, gritavam quando olhavam no fundo uns dos outros. e era ouro pra mim, aquela canção. por fim, os calos arrebentaram, os músculos retesaram, as mãos abertas se soltaram fio a fio. a mina foi sendo deixada para trás, um lento e silencioso movimento retrógrado. então: vindo de lá, com as mãos abanando, recordando os papeis rasgados de agora, olho para trás como que pra frente. parece sem sentido o que digo, mas as palavras trocadas de lugar me deram esta liberdade. adeus, adeus, sou mais longe ainda daquele lugar temporário, o fundo do mundo onde nos encontrávamos. torna-se ouro preto o que eu cantava, torna-se o fim completo das minas gerais. restam tão só águas tranquilas, cheias de mercúrio, feridas embebidas em mercúrio-cromo.
.: marcio markendorf
21.9.18
feriado
dear,
o feriado desceu nas sacadas, nas ruas, nas gruas da construção civil. e eu caminhei por esse dia pachorrento, tímido das gentes, um tanto nublado, como quem abre um mar silencioso. queria mesmo é passear pelo bosque dos sicômoros, de mãos dadas contigo. deitar em verdes pastos feito imagem bucólica, cheia da febre dos campos e do amor dos pastores na relva. desceríamos o dia como em devaneio, friccionando as pálpebras contra as bocas da noite, esperando por beijos demorados de lua. não me consola essa paralisia do dia, essa distância, esse intervalo. o amor nunca deveria ter folga de trabalho. mas: as janelas estão fechadas e só me lembro de nós, interrompidos na estrada, debaixo de uma escada e com bastante azar. enquanto os outros dormem atrás das cortinas, acordado eu singro pelos sonhos, faço deles meu próprio mito, minto para mim que a fantasia pode virar estátua, pode virar gente, pode virar alegria. chutando pedras pelo caminho, vendo bisontes pichados pelas paredes, voltando a uma época pré-histórica, regredindo a um ponto osso, eu conjuro os dinossauros enamorados. eu conjuro a lactação infinita, a via láctea de um seio materno, derramando sobre mim um leite bom, um labor de amor que nos construa e faça de nossa existência multidão.
.: marcio markendorf
o feriado desceu nas sacadas, nas ruas, nas gruas da construção civil. e eu caminhei por esse dia pachorrento, tímido das gentes, um tanto nublado, como quem abre um mar silencioso. queria mesmo é passear pelo bosque dos sicômoros, de mãos dadas contigo. deitar em verdes pastos feito imagem bucólica, cheia da febre dos campos e do amor dos pastores na relva. desceríamos o dia como em devaneio, friccionando as pálpebras contra as bocas da noite, esperando por beijos demorados de lua. não me consola essa paralisia do dia, essa distância, esse intervalo. o amor nunca deveria ter folga de trabalho. mas: as janelas estão fechadas e só me lembro de nós, interrompidos na estrada, debaixo de uma escada e com bastante azar. enquanto os outros dormem atrás das cortinas, acordado eu singro pelos sonhos, faço deles meu próprio mito, minto para mim que a fantasia pode virar estátua, pode virar gente, pode virar alegria. chutando pedras pelo caminho, vendo bisontes pichados pelas paredes, voltando a uma época pré-histórica, regredindo a um ponto osso, eu conjuro os dinossauros enamorados. eu conjuro a lactação infinita, a via láctea de um seio materno, derramando sobre mim um leite bom, um labor de amor que nos construa e faça de nossa existência multidão.
.: marcio markendorf
28.11.17
argonauta
my love,
ele deixou para trás, há muitos anos, uma cidade antiga. quase nem se lembrava mais do cheiro da terra, da aspereza das muralhas, da vitória das árvores retorcidas em ponta de abismo. o corpo era cerrado; a alma, mansa. ao longo do caminho foi deixando as armas, os brasões, a memória das entradas. atravessar a fronteira, às cavalgadas, foi como um batismo de sangue santo. na aldeia em que ele interrompeu viagem desordeira, os pés fizeram raízes, os galhos subiram a estrada. mas ainda não sabia ele que o tronco só dá sustento se lhe desenham no corpo uma sede, uma sombra, uma copa. muito de sol havia, mas não o consolo dos galhos braços de uma árvore vizinha. a alma, que era mansa, esteve por muito tempo inquieta: vagou pelas encostas, esqueceu-se pelas pedras, engoliu muita água de mar. encontraria ela um navio a lhe saudar da baía o tempo bom e a chegada da pescaria? era o que queria, mais que a fome, mais que o nome do homem que do alto a vigia.
foi quando viu, saindo da névoa em que se encontrava, um navio de cento e quarenta velas. o casco era arisco dos areais e, à distância, a embarcação lançou âncora e sinal de paz. uma só pessoa, uma só, desceu em um bote frágil e sem bagagem. a alma se fez de luz-guia e ainda pediu a deus a calmaria para a pequena passagem. frente a frente, a alma e o marinheiro eram como dois amantes, salvos de um naufrágio, perdidos em uma ilha. saudaram-se em um arrebol triste e, por isso, cheios da carne do por do sol, sentiram saudades da comunhão que sequer havia começado. a alma levou o viajante para perto da morada de árvore e, sem que uma palavra tivesse sido mencionada, o estrangeiro tatuou no tronco o símbolo do amor. e, para sempre, fez daquela sombra doce a sua casa; como da casca, fez a árvore o alimento para um peregrino argonauta, quem tanto o procurou.
assim seria nossa mitobiografia, amor, cuja história já não me basta, cuja história é apenas história, não a casca, a casa, o casco de uma samotrácia vitória. antes fosse um jonas no ventre da baleia, gestando o amor de dois homens irrepetíveis na paisagem. mas a ilha que nos afunda, sinto dizer, engole a civilização única que somos, faz dos nossos imperiais corpos, uma fagulha pequena, um estranhamento. faz também o retorno da víbora, a expulsão do pensamento, perdidos em dois que não se param de caçar e, apesar disto, nunca se encontram nos terrenos cercados do céu, da terra e do mar.
ele deixou para trás, há muitos anos, uma cidade antiga. quase nem se lembrava mais do cheiro da terra, da aspereza das muralhas, da vitória das árvores retorcidas em ponta de abismo. o corpo era cerrado; a alma, mansa. ao longo do caminho foi deixando as armas, os brasões, a memória das entradas. atravessar a fronteira, às cavalgadas, foi como um batismo de sangue santo. na aldeia em que ele interrompeu viagem desordeira, os pés fizeram raízes, os galhos subiram a estrada. mas ainda não sabia ele que o tronco só dá sustento se lhe desenham no corpo uma sede, uma sombra, uma copa. muito de sol havia, mas não o consolo dos galhos braços de uma árvore vizinha. a alma, que era mansa, esteve por muito tempo inquieta: vagou pelas encostas, esqueceu-se pelas pedras, engoliu muita água de mar. encontraria ela um navio a lhe saudar da baía o tempo bom e a chegada da pescaria? era o que queria, mais que a fome, mais que o nome do homem que do alto a vigia.
foi quando viu, saindo da névoa em que se encontrava, um navio de cento e quarenta velas. o casco era arisco dos areais e, à distância, a embarcação lançou âncora e sinal de paz. uma só pessoa, uma só, desceu em um bote frágil e sem bagagem. a alma se fez de luz-guia e ainda pediu a deus a calmaria para a pequena passagem. frente a frente, a alma e o marinheiro eram como dois amantes, salvos de um naufrágio, perdidos em uma ilha. saudaram-se em um arrebol triste e, por isso, cheios da carne do por do sol, sentiram saudades da comunhão que sequer havia começado. a alma levou o viajante para perto da morada de árvore e, sem que uma palavra tivesse sido mencionada, o estrangeiro tatuou no tronco o símbolo do amor. e, para sempre, fez daquela sombra doce a sua casa; como da casca, fez a árvore o alimento para um peregrino argonauta, quem tanto o procurou.
assim seria nossa mitobiografia, amor, cuja história já não me basta, cuja história é apenas história, não a casca, a casa, o casco de uma samotrácia vitória. antes fosse um jonas no ventre da baleia, gestando o amor de dois homens irrepetíveis na paisagem. mas a ilha que nos afunda, sinto dizer, engole a civilização única que somos, faz dos nossos imperiais corpos, uma fagulha pequena, um estranhamento. faz também o retorno da víbora, a expulsão do pensamento, perdidos em dois que não se param de caçar e, apesar disto, nunca se encontram nos terrenos cercados do céu, da terra e do mar.
10.7.17
o cerco de constantinopla
my dear,
o descompasso entre os tempos, o do vivente e o da vivência, impede o recebimento de missivas. então, retorno à captura do instante antes por meio da fratura temporal, do encavalamento histórico. grande chiste, faísca, explosão? a pretensão de não me ser sendo: extravia-me a carne em pequenas postas, subtraia-me dos punhados de pós, pois de lá nós somos, para lá regressaremos em velocidade aterradora. tal é o horror cósmico das almas terrestres, caminhando a pé no leito dos mortos, sem qualquer velocino. a demência me consome com a invasão, menos que um sardanapalo mais que um nero. essas palavras retornam no tempo para tocar o instante anterior – o do cerco. os carpinteiros já derrubaram a cumeeira, ou eram de exército seu exercício? os templos arruinados, as escadas sangrentas, o amor entediado e desumano. todos e qualquer um, bem os sabia, cada qual um colosso equestre, carregando no ventre o ódio dos traídos. nada me cativa , pura carnificina de raposas, usadas agora em estolas e bolsas de griffe. ouço de longe a cítara, as setas silvando nas muralhas do chifre de ouro. foi pra isso, foi pra isso que vieram. o estuário anuncia a vinda de istambul e o fim. bósforo, mármara, negro, me acenam à distância, contemplativos, pesarosos. jerusalém, jerusalém, me encha agora da glória da peste negra, adoeça todos os cativos, amordace todos os combatentes, pois a idade moderna não é pra mim. os nativos do meu peito sempre serão bizantinos. por isso, nas profundezas da cidade destruída, recolho meus membros, minhas palavras e minhas dívidas. o alcance é pelo instante antes; depois, não haverá amorosa vida. e apenas o messias se achegará a mim, roçando minha garganta com o bitter-sweet corpo e sangue de cristo, signos de paixão que eu devoro, e quedo devoto, de joelhos embalsamados.
.:marcio markendorf
o descompasso entre os tempos, o do vivente e o da vivência, impede o recebimento de missivas. então, retorno à captura do instante antes por meio da fratura temporal, do encavalamento histórico. grande chiste, faísca, explosão? a pretensão de não me ser sendo: extravia-me a carne em pequenas postas, subtraia-me dos punhados de pós, pois de lá nós somos, para lá regressaremos em velocidade aterradora. tal é o horror cósmico das almas terrestres, caminhando a pé no leito dos mortos, sem qualquer velocino. a demência me consome com a invasão, menos que um sardanapalo mais que um nero. essas palavras retornam no tempo para tocar o instante anterior – o do cerco. os carpinteiros já derrubaram a cumeeira, ou eram de exército seu exercício? os templos arruinados, as escadas sangrentas, o amor entediado e desumano. todos e qualquer um, bem os sabia, cada qual um colosso equestre, carregando no ventre o ódio dos traídos. nada me cativa , pura carnificina de raposas, usadas agora em estolas e bolsas de griffe. ouço de longe a cítara, as setas silvando nas muralhas do chifre de ouro. foi pra isso, foi pra isso que vieram. o estuário anuncia a vinda de istambul e o fim. bósforo, mármara, negro, me acenam à distância, contemplativos, pesarosos. jerusalém, jerusalém, me encha agora da glória da peste negra, adoeça todos os cativos, amordace todos os combatentes, pois a idade moderna não é pra mim. os nativos do meu peito sempre serão bizantinos. por isso, nas profundezas da cidade destruída, recolho meus membros, minhas palavras e minhas dívidas. o alcance é pelo instante antes; depois, não haverá amorosa vida. e apenas o messias se achegará a mim, roçando minha garganta com o bitter-sweet corpo e sangue de cristo, signos de paixão que eu devoro, e quedo devoto, de joelhos embalsamados.
.:marcio markendorf
7.2.17
Ao curado por deus
Das montanhas, quero o movimento, o trânsito pleno no espaço, o encurtamento que somente a fé provoca entre dois pontos. Eu quero: usted. A hóstia, o pão, o sangue crístico, também a ressurreição das memórias, a remissão das faltas pretéritas e de agora. Quero ter a cabeça cortada de Isaac, a doce boca de Iokanaan - sacrifícios doloridos da paixão. Como o do Filho, em via crucis, os braços abertos num abraço de nunca, chorando o abandono do pai. E do país, uma terra de promessas, um deserto vasto antes de Canaã. Abandonado à sorte do jejum e da morte, voltando a todo recuerdo como Lázaro na gruta quente. Eu vos digo: quero ser aqueduto, em linha reta, jardim em suspensão, suspeita que eu quero. Ainda agora bebi o salmo, o mel, engoli Salomão e Reis, fiz poesias de Eclesiastes, me ajoelhei por você. Abri o peito, vermelho mar, revolvendo o Egito para depois, dando adeus, abraçando errância, dando as costas a deus. Menos a você, esta fragrância de erva e bezerro, imolação de. amor tenra e eterna. Como os lírios, os castelos e os dragões vindouros do céu férreo. Eu quero verdade, versículo, verbo. Quero que se faça a luz, o sétimo dia, um jardim de éden bem semeado. Tudo para que possamos dormir juntos, hasta siempre, completamente inebriados de aurora.
25.11.16
duração
honey,
brigamos outra vez. no entanto: tudo safe and sound. sem dedos em riste, palavras de ordem, pratos atirados no chão. apenas o silêncio centrípeto. as costas se mirando na cama. as mãos enfiadas entre as pernas, querendo um conforto que não há. e, sim, aquela tristeza característica: baixo profundo, feito um ganido de cão adulto, sem raça. choro que já me disse achar, com certo paradoxo, delicado e insuportável. como isto, esta data. e você acha que brigamos só porque ando sensível demais, que os dias encerrados no quarto não me fazem bem. a fratura no tornozelo, a solitude da casa fechada. volta e meia vou até a sacada, vejo o movimento da rua, sinto o vento, o sol. a vida não para. e lá dentro: as coisas fora da ordem. as roupas recolhidas na segunda fazendo aniversário no sofá da sala. a impossibilidade de deslocar o que quiser pela casa. duas muletas, duas mãos ocupadas em se equilibrar. andar é quase o que não faço, exceto nos cercados metros quadrados deste lugar. restam os filmes da televisão, a lista dos livros, o videogame como companhias insossas. e o cansaço de estar muito tempo comigo mesmo. e também com: as ranhuras na parede de gesso acartonado, a espera ansiosa pelo banho noturno, a despensa aumentando o vazio. me põe para baixo o cansaço do tempo que ando só, vendo os paranhos a aparecer nas esquinas do teto, notando o acumular de pelos nos ladrilhos da casa, ouvindo sem curiosidade os sons do corredor do prédio. se estou sensível é por este vazio, esta espera insuflada. como uma raposa que prepara o coração desde as seis da tarde, eu me preparo para sua chegada. o gesto ansioso de um cachorro a espera cronometrada do dono, depois de um entediante dia consigo, com seus latidos e nenhum afago. brigamos again. no entanto: quando ouço a porta se abrir, depois de tanto tempo aqui, tudo se desfaz. e somos nós dois outra vez.
brigamos outra vez. no entanto: tudo safe and sound. sem dedos em riste, palavras de ordem, pratos atirados no chão. apenas o silêncio centrípeto. as costas se mirando na cama. as mãos enfiadas entre as pernas, querendo um conforto que não há. e, sim, aquela tristeza característica: baixo profundo, feito um ganido de cão adulto, sem raça. choro que já me disse achar, com certo paradoxo, delicado e insuportável. como isto, esta data. e você acha que brigamos só porque ando sensível demais, que os dias encerrados no quarto não me fazem bem. a fratura no tornozelo, a solitude da casa fechada. volta e meia vou até a sacada, vejo o movimento da rua, sinto o vento, o sol. a vida não para. e lá dentro: as coisas fora da ordem. as roupas recolhidas na segunda fazendo aniversário no sofá da sala. a impossibilidade de deslocar o que quiser pela casa. duas muletas, duas mãos ocupadas em se equilibrar. andar é quase o que não faço, exceto nos cercados metros quadrados deste lugar. restam os filmes da televisão, a lista dos livros, o videogame como companhias insossas. e o cansaço de estar muito tempo comigo mesmo. e também com: as ranhuras na parede de gesso acartonado, a espera ansiosa pelo banho noturno, a despensa aumentando o vazio. me põe para baixo o cansaço do tempo que ando só, vendo os paranhos a aparecer nas esquinas do teto, notando o acumular de pelos nos ladrilhos da casa, ouvindo sem curiosidade os sons do corredor do prédio. se estou sensível é por este vazio, esta espera insuflada. como uma raposa que prepara o coração desde as seis da tarde, eu me preparo para sua chegada. o gesto ansioso de um cachorro a espera cronometrada do dono, depois de um entediante dia consigo, com seus latidos e nenhum afago. brigamos again. no entanto: quando ouço a porta se abrir, depois de tanto tempo aqui, tudo se desfaz. e somos nós dois outra vez.
17.7.16
o totem
eis-me aqui, diante de ti, para acertar as contas com meu passado. viajei até o mais longe para encontrar tu, monstro totêmico, razão de todos os meus fracassos. a ti nunca superei, e depois de tua estada furiosa em meu corpo, nunca mais encontrei a estrada tranquila dos dias. predador, predador, não fosse por este encontro, saberia ainda viver o encanto dos que tem desejo. mas por causa de ti, sim, eu dei as costas à civilização: a flor da barbárie cresceu em mim. e foi horrível, horrível. não vim de tão longe para sofrer outra imolação, voltei até o coração das trevas para sacrificar tua imagem sombria do meu pescoço. vês este machado? com ele farei minar o sangue, desfigurarei teus múltiplos rostos, deceparei tuas patas de leão, arrancarei o flanar de tuas asas. fostes ancestral em minha vida, o sinistro persecutório das penumbras, a ilha da terrível sede. mas neste momento em que me reencontro, o que digo é uma reza que me libera das liturgias que fazia a teus pés, giving you devotion. massa de carne e ossos, sangue e tripas, não significas mais nada para mim, nada tenho mais a ver contigo. teus louros escorrem pela terra, grossos e azedos; meus olhos debutam as histórias do novo mundo, nativos, ingênuos e limpos para o amor.
.: marcio markendorf
5.5.16
levezas de retorno
honey,
.: marcio markendorf
(ao som dos sussurros de caio e ana)
te amo, não esquece, no singular e no plural.
estive ausente por tanto tempo. me perdoa? sim, sim, eu recebi todas suas cartinhas tão deliciosas aos olhos (e tão mais carinhosas se fossem faladas ao ouvido). que desastre o dos morangos. já os vi daquele jeito, vermelhos, murchos, camadas de cinzento tátil. pior de tudo foi perder o suculento por nojo e estrago. mas não é assim que você está, baby. você é que se põe numa bandeja imaginária. puro balde de água fria. vai ver por isso os dragões não conhecem o paraíso: fazem do juízo interior uma pesada corrente. lembra dos tijolos? tijolos e pedras de calcutá. solta a sacola. é você quem decide o que carrega. leva da viagem verdades e souvenirs. se liberta na janela da alma muito mais graciosa. em horário comercial, de preferência. eu aqui, não paro de falar na morte que nem me parece negra nem suicida. driblei o medo. essa morte, hoje, me faz rir de vez em quando. faça como eu: dê risadas ébrias do que te assusta, não acalme a loucura. esconjura esses demônios de mofo e verde gris. alça teu voo ao som de mensagem mecânica, olivetti college, com erro de paginação e escuta de turbina: devido ao reposicionamento da aeromoça, o desembarque foi alterado. portão p. de paraíso.
.: marcio markendorf
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