20.11.06

carta de moscou.



my dear,

uma roleta russa, uma montanha russa, uma mulher russa. está tão frio por dentro que preciso tomar vodka pura, enquanto as torres do kremlim cospem história e ofensas sobre mim. uma bota de soldado bolchevique na vitrine. uma dor de ouvido no coração da rússia me aperta como um soviético apertaria os punhos e os colarinhos dos seus casacos de pêlo. era um urso, um cosaco? que desamparo. tentaram reformar tudo, mas a neve não deixou. achas crepitam nas lareiras das casas. faz muito frio. e eu faço literatura quase o tempo todo. um mundo de crianças rosadas lá fora gritando. parece que uma tragédia engrossa o ar onde eu piso. vejo fantasmas franceses morrendo de frio nas esquinas, queimando tudo. digo bonsoir e aceno. eles não acenam de volta. não reconhecem mais a própria língua. esqueceram baudelaire, rimbaud, verlaine. só sabem ler guerra e paz no original, fazer roleta russa com seis balas no tambor, desmontar gordas bonecas babushka. nesse quarto de hotel o suor rançoso dos czares se desenrola nos papéis de parede como um silk-screen de esqueletos. minha pele pode ter um cheiro fino de amoras ou o de um bebê limpo e sorridente, mas nunca esse perfume enjoado de fuligem e cerejeiras que vem de são petersburgo. trens vêm e vão de lá. parecem rochedos, parecem carvão. apitam como um polaco que grita. nesse lugar qualquer coisa parece vermelha, aveludada e comunista. e meu pequeno coração burguês faz exigências privadas e mesquinhas de amor que ninguém pode. estou gastando demais a palavra, não acha? estou gostando demais da palavra. mesmo aqui, onde visto os vestígios das muralhas, das ruínas, dos desconhecidos. pelo menos tenho a suavidade do balé quebrando nozes num lago de cisnes mortos. só não queria ter tanto medo da língua russa. parece tão pouco poética. quase um corte de navalha de tão dolorida. e funda. mas em breve estarei de volta, para casa, em mim. assim espero, assim quero. aguarde retorno. boas lembranças a todos.

p.s. não me escreva. não me sobrescreva.

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