25.1.10

a mesma fome, não outra


dear,


tenho tanto ódio e ainda assim é belo o sofrimento das cartas. da desordem e da desarmonia é que tenho mais ódio. encho a garganta de infecção porque é impossível falar da fome com beleza. sou obrigado a mostrar o corpo enfermo aos passantes, aos carteiros, aos destinatários. preciso mostrar as feridas de magreza e as insuficiências da carne aos de rosto coberto e aos descarados. é quase mórbida a doença da fome, quase catastrófica, quase uma punição. pergunto muito o porquê e deus não responde, nem ninguém que de fato exista responde. (bem verdade que às vezes acho que quero encontrar deus com as palavras; outras vezes que quero dar conhecimento de vida às palavras de barro feitas por um deus vindicativo e sedento). entenda que as linhas desta carta são naturalistas-polaróide, fiéis demais aos sentimentos instantâneos, muito embora, não raras as vezes, refratem com lentes grossas e embaçadas o próprio escrevente. saiba que não é gostoso escrever. é uma parte que dói as costas, o couro cabeludo, as pernas, o punho. talvez porque seja a memória que me coloque muito sensível para as coisas, sobretudo as do que poderia ter sido. a minha recordação vem como patifaria, as vivencio como a fantasia em que eu gostaria de acreditar. e nós distantes, amor, não posso, nem quero concordar. então: qual erótica testemunha estes vícios de linguagem, os silêncios e as verborragias do documento escrito? qual testemunho pode me representar no mundo dos sonhos? pois é ali que quero repousar com o rosto sereno e o coração em canto. é ali, de corpo pacífico entre as feras e os cordeiros, que pretendo dormir - e para sempre - por encantamento em dias de alimento inesgotável.

Um comentário:

Anônimo disse...

É.. o que poderia ter sido, e não foi..

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