8.11.06

carta de ouvido musical


honey,

escrevi para te contar o improvável pequeno a que me presto: uma música melodiosa evapora da vitrola. a agulha pousa no invisível, mas ainda assim arranca dos espaços vazios os acordes sujos de alguma sinfonia bruta. imagino o esmagamento da minha voz nos compassos, o ritmo dos meus passos pisando duro na valsa que evapora da vitrola falsa. sinto que não há versos ou lados, há silvos lascivos de vento sonoro. um filete de sangue escorre de cada disco vivo, coagulando denso na nota íntima de cada aurora vívida. porque um amanhecer, meu bem, é uma música-pedaço de vida, história contínua, mas impegável, suspensa nos jardins suspensos do ar, do mar, das casas de sopro e flor de brisa. e a música é uma virgem magra vagando sem resposta nesta aurora torta e rachada de nouvelle vague. tua voz, esse ruído, é uma noiva rubra, de dedo em riste, numa novela vaga qualquer. seguem-se estribilhos de barulho. e outro vapor de notas, estalar de vitrolas, vozes, vestes de madrugada que trago no corpo turvo de uma ópera. e me presto a rodar os pés calçados apenas por meias nos pisos de taco do assoalho. tua voz, tua voz, uma flauta salgada de dar nó na garganta, nó nos dedos das cordas que pinçam um cravo distante. tua voz de cravo, flor de defunto, exalando um sopro forte de fagote, agora distante, distante. tocata e fuga. me desacompanha nessa vapor de vitrola. lacro o lado fraco da minha vitória: a agulha da literatura repousa sonora na minha pele.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nunca sei se o "honey", ou o "meu amor" são ironia ou outra coisa. "a agulha da literatura repousa sonora na minha pele" é uma coisa linda de se ler. Invejável até, se eu tivesse pretensões de escrever. Mas gosto é de ler. Parabéns.

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