17.1.08

[apenas um fragmento]


dear, eu não queria que fosse morar em uma casa de santa maria. não tanto pela distância, mas porque me desagrada entrar novamente em uma ordem de coisas, fechada e construída, nas quais continuo seguindo regras e ditando horários. para mim é difícil entrar em um ambiente onde alguém que vive razoavelmente dispõe tudo como algum tipo de reiteração mental daquilo que sente ou pensa: em um momento há um pouco de bagunça com calçados e roupas e livros; em outro, os livros todos organizados por ordem alfabética, o assoalho encerado cheirando a óleo de peroba e cada coisa em seu lugar devido. ah, dear, como é difícil opor-se e depois aceitar com inteira submissão que as ordens materiais (organizadas e desorganizadas) possam sofrer uma outra lógica, um binarismo estranho em que tudo se entende. lá pelas tantas eu posso até fazer cara feia para as coisas desarrumadas, os travesseiros no chão ou as toalhas molhadas pela casa. lá pelas tantas eu poderia fazer cara de censura e disparar um ar condenável desaprovando o pequenos caos do mundo. mas era tão somente isso, um problema de encaixe para arranjos metódicos ou nem tanto. agora, depois de tanto tempo, me censuro neste apartamento da rua europa onde cada uma das coisas parece ter voltado ao seu lugar: os móveis estão sem poeira e devidamente lustrados; os livros de baudrillard do lado esquerdo da mesa, ao alcance da mão; a cama branca e limpa e pronta à minha espera. antes de partir, quando tirava qualquer coisa do lugar você não apenas alterava o jogo de relações com todo o apartamento, mas modificava o equilíbrio com os objetos, os instantes e as almas. e em desequilíbrio é mais fácil pensar no outro, pensar em dois corpos num mesmo espaço. depois de oito inteiros meses, eu me sinto um morador distante, desconhecido e um pouco anônimo. o primeiro dia de ausência segue-se de uma total desorganização que inclui dormir às nove horas da noite e acordar quinze horas depois e sem fome. preenchi o dia com minhas próprias imagens-fantasma: café da manhã na cama e um bafo de gato, convite impaciente para o almoço, irritação breve pela preguiça ou pela falta de atenção, ataque de cócegas depois das três da tarde, um pouco de fumaça na janela da cozinha, uma noite muito quente com três ventiladores no máximo.
eu sei muito bem porque voltou para sua casa, um lugar festejado de sol e amor. tudo parece natural, como sempre que não se sabe a verdade [copiei de cor, um pouco por inveja]. você foi para terra santa e eu fiquei no velho apartamento da rua europa, elaboramos um simples e satisfatório plano de mútua conveniência, até que o inverno te traga de volta a barcelona e nos atire aos abraços e beijos outra vez. mas não é por isso que escrevo, escrevo esta carta por causa da ausência, me parece justo informar; e porque eu gosto de escrever cartas, e talvez porque chove desde que se foi. dear, quero te dizer que a ausência aqui é aguda de tão funda e que as retinas te desenham por todos os cômodos da casa. [...]

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