dear,
por favor, arranca-me dessa viagem adentro e tão longa. por favor, desacelera os trilhos, engole a fumaça, retrocede o metal dos vagões até o disparo anterior. eu não quero mais lembrar. não preciso lembrar que ao dormir em mim ainda acordo selvagem, que amaria de novo e outra vez, de joelhos, tua face de ídolo. o amor é feito na medida da barbárie, entenda. então por que os brancos do outro lado não invadem logo este território e dizimam minha civilização indígena e interior? tudo. tudo menos a permanência de um totem que perfura o céu e a carne suculenta do meu peito. vê este corpo? você poderia comê-lo. é o de um menino. devora-me até o despontar sublime das fraturas dos ossos, devora-me antes que me devorem as liturgias e os cânticos da memória. uma criança como eu só poderia mesmo se impressionar com as iluminações da natureza e o passado evocado por um oráculo-xamã. [interrompe os trilhos, por favor. não quero recomeçar a pedir. interrompa a viagem antes de guarapuava, kondá, cacique doble]. queria entender o que subtrair do menino para fazê-lo inteiramente homem. isto é uma prova. o retorno ao countryside é um terrível rito de passagem, por meio do qual sou obrigado a reviver tudo o que uma alma de criança lutou para esquecer. e revivo com brutalidade o amor como se a mil flechas envenenadas me penetrassem a alma. eu tento acordar o homem que mora em mim e suportar de imediato o que só aos homens é dado suportar - uma memória contínua e sem paixão. mas já segurei o homem pelos ombros, chacoalhei o seu corpo, gritei em seus ouvidos, ameacei-o de matar-nos. e nem nada: o homem dentro de mim dorme em sua tranquila noite. dorme enquanto viajo e até depois. qual maldição abandonaria o espírito de uma criança à constante recordação de todos os seus amores? eu vejo o totem em suas múltiplas faces de fúria. eu vejo a mim diversas vezes genuflexo em louvor. por favor, se não pode apagar a constelação luminosa das lembranças, arranca-me de mim, até as raízes, o pathos que ela desenha no céu da boca.
(imagem de: Hopper, dibujo para Sacrificio, publicado en "Everybody's", enero de 1922 IN Artbook Hopper: realidad y poesía del mito americano. Electa Bolsillo)
Um comentário:
Existe um desenho de Hopper que tencionaria ainda mais CountrysideIII. Nela, uma jovem americana está vestida de roupas brancas em uma floresta ameaçadora e tendo negros fardados a sua volta. O medo frágil da jovem, até os mínimos gestos caricaturado em feminilidade, é superado pela expressão de terror mudo e inexpressível do jovem negro que olha para cima como se olhando para a morte com a resignação e a atenção de quem captura o momento da investida da fera. Lá, a barbárie já deixou seu impacto, e não foi a civilização branca, nem a indígena o que inquietou os viajantes e a floresta, mas uma força não conhecida. Intuo que tão sagrada quanto a invocada pelos totens, mas ainda sem matéria porque pura divindade. Hopper, dibujo para Sacrificio, publicado en "Everybody's", enero de 1922 IN Artbook Hopper: realidad y poesía del mito americano. Electa Bolsillo.
Postar um comentário