15.3.09

countryside II

dear,

não consigo reverberar a fúria e a fome que me consomem. mas não posso dar a entender aos outros meus olhos de tigre e minha boca-de-leão sangrenta. é perigoso. proibido. indecente. imagine você se eu pudesse mostrar as garras e o coração em postas? quem iria me amar assim, tão intensamente e demorado quanto espero? resta-me olhar para trás e extrair algum sentido da legião de fracassos que adormece no countryside da civilização. mais profundo e longe, na reserva indígena de minha mente, não consigo parar de pensar no grande totem, no colosso de carvalho que me assombra. não consigo superar sua imagem, a de uma cova de leões, cheia de amor e de sombras na caverna. eu inventei cada lasca de madeira e cada entalhe de sua face no horizonte dos meus olhos. a sua imagem é o som de um assédio furioso que consome a pele e a carne viva. a própria imagem sua, o duplo de madeira que inventei, é a saudade igualmente furiosa e cheia de som que assedia meu corpo. a origem do universo, o grande big bang, não comporta um só fragmento de matéria do que significaria sua luz penetrando o mistério de minha existência. quando pressinto sua presença próxima, eu me ajoelho em pensamentos como se a um deus me ajoelhasse. e luto bravamente contra a devoção desse amor excessivo, insuportável a um pequeno homem. por isso, trabalho como um lavrador faminto para fazer da lavra recalcada a forma provável de sobreviver a todos os outros dias que ainda virão. eu inventei você na minha barbárie. e por nunca ter me permitido exterminar o que há no coração da selva, por ser mais forte que minha vontade, de tempos em tempos revivo a aniquilação passada e futura de todas as civilizações. a marcenaria do totem esgotou meu imaginário afetivo - tudo está ali concentrado. em cada dente ou osso postiço eu me vejo tal qual um reflexo distorcido de mim mesmo. a distância entre nós não nos traiu. eu que atravessei o infinito por milhares de anos para roçar o desejo no lugar no qual o universo dobra sobre si mesmo. obscuro, insensato: amo em você o que nunca existiu em mim. esta é a iluminação do xamã que se enfia em trens gigantescos, desejando percorrer o transe do countryside e amar nos fracassos o que sempre existiu em mim. no último instante de epifania, adivinho o que há de pior: eu inventei a nossa própria destruição. isto representa a reverberação da fissura sobre todos os monumentos, primitivos ou rurais, para os quais sequer olhei. tenho medo de me atrever ao tigre e de, talvez, me convencer a nunca mais domá-lo dentro de mim.

7 comentários:

Unknown disse...

não dome
não dome
e dorme de vez em quando ou enquanto os leões saciam.
porque são os tigres donos de suas fêmeas e não esperam alimento algum e mais! escrevem com o sangue das vítimas sem o pudor das jubas falsas. tigre seja.

Anônimo disse...

acompanhando.
abraço.

Dan Oberdan Piantino disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Dan Oberdan Piantino disse...

Há textos capazes de se tornarem emblemas de um ou outro momento de nossas vidas, countrysideII é um deles.
Esse narrador conversa com o leitor como quem divaga sobre os muitos anos de sua vida. Sua voz rouca fala sobre o grande "duplo" ser uma invenção que inventou ao próprio narrador (duplicidade encantadora). Confessa o temor de que seu corpo exposto em dobras dissecadas possa não ser amado, por ser tão crua a sua humanidade.
O totem foi feito de tudo que esse experiente narrador tinha de mais sólido, mas agora se revela como reflexo. O reflexo amado ameaça desaparecer como se feito de pó, a perda é eminente e o narrador pouco pode fazer além de narrar.
Me pergunto se um totem de reflexos não seria mais divino que um feito de madeira duradoura. Divino porque humano, porque capaz de se transformar e passar a ser parte da memória de outras pessoas e repercutir em outros textos. E perguntaria ao personagem-narrador (se eu pudesse ser feito de literatura por alguns minutos) se ele não percebe que "o som de um assédio furioso que consome a pele e a carne viva" é um indício de que o próprio totem quer transformar o corpo do narrador em luz, fazê-lo divindade (lembro de mitos sobre a ascensão de homens a deuses).
Sinto que o totem não foi inventado pelo narrador, existia antes dele e pode ser chamado de "deus" e "amor".
"A reverberação da fissura sobre todos os monumentos" é uma imagem impactante, enigmática e fala comigo sobre minha história de fraturas, esse livro que rascunho e poderia ter sua incorrespondência no último capítulo.

Roseli disse...

Marcio, estou atônita diante de tuas palavras. viajei, pus-me a imaginar o que seria essa escrita? uma faca no estômago? Estou mesmo atônita e maravilhosamente feliz por ter-te achado aqui. Tua frase que mais me acalenta e dói: "amo em você o que nunca existiu em mim" Nossa... silêncio.

ZG disse...

"amo em você o que nunca existiu em mim"

cara: é brilhante. Cada arranjo, cada sentimento, cada imersão e mergulho que nas tuas palavras somos levados a fazer.

obrigado.

marcio markendorf disse...

impressionado com zg.

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