19.4.15

a cidade do amor

honey,

quando intui que tudo estava para se acabar, eu me atirei ao chão de tábuas. as mãos arranhavam o assoalho procurando por onde se segurar. cheguei a sentir os dedos ensanguentados, feridos, as unhas lascadas, arrancadas na violência que me tirava à força da sala. não conseguia mais ver você, não sabia para onde havia ido, só pude pegar as imagens da caixa de frutas de plástico, tombada, servindo de pequena mesa, aparador, o verde dos vasos de planta na sacada, as almofadas floridas onde há pouco estávamos deitados, a pequena gaiola branca suspensa no teto...

pela terceira noite seguida, sonhei conosco. tive a sensação deliciosa de que você gastava meus lábios, de que nos engatávamos mesmo na desmedida. minhas pernas sussurravam carícias por sobre as suas; meu corpo de pijamas, sem roupa íntima, insinuava malícias pelo tecido de algodão. eu mal conseguia respirar e trazia seu rosto para perto, em um boca-a-boca que me lançava de volta à vida, à terra, aos lençóis. era marulhoso nosso jeito de nos olharmos, inquietante como um gigante que olha o que não é altura, enfeitiçador como uma sirena que lambe os ouvidos do navegador.

era sonho agora, mas não demora não a virar documentário. o cenário já está composto, os personagens estão dispostos a agir de modo natural. também de apostar no caminho inconsequente, de quem sutura o continente e a ilha em um só coração. rabiscamos os pedidos em pedaços de papel, guardanapos de restaurante, nuvens do céu baixo - que o que vier seja espontâneo, doce, abusado. que sejamos, não importa.

ainda da cama desalinhada, com o rosto amassado, a dor vívida do desejo interrompido, vi da janela a neblina descer do morro, cat power desaparecendo no ar, nina simone vindo lá de trás, do mar, como uma vitória de samotrácia cantora: i put a spell on you, 'cause you're mine. você, de repente, antes ausente destes travesseiros, espectro-amor, me abraçando e perguntando se eu não sabia que roma não foi feita em um só dia.

ao que eu responderia:
eu esperei pacientemente a cidade do amor ser construída. passei longos anos preparando meu corpo para que você pudesse se aninhar nele tirando do infinitivo um sem número de verbos, atirando-os para o infinito, o não-tempo, o instante-momento em que somos um só, sem mais. desde a fundação da cidade, amor, eu tenho um sonho: distraídos, cruzamos caminhos na rua, sem saber que nos veríamos, também em sonho, olhos nos olhos, muito tempo depois, mirando nossa solidão sem propósito em nossas camas separadas, à espera de nós dois no mundo de fora dos que dormem.

.; marcio markendorf

2 comentários:

maurorafaell disse...

Ual!

aluah disse...

perdi a escrita

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