23.3.15

os sapateiros e o amor

dear,

meus sapatos favoritos estão se perdendo. as solas descolam na lateral, o calcanhar se esfarela por dentro, os cadarços arrebentam-se com a força dos laços. o sapateiro já disse que não pode fazer nada, não vale a pena o trabalho, nem poderia fazê-lo. fico triste em saber que terei que aposentá-los, que coisas boas não duram pra sempre. eu evoco essa tristeza trivial porque ela expressa a dimensão da raridade, amor. a dimensão do amor é a a raridade. 

ontem eu tive a impressão de ver você. foi de relance, entre uma queda e outra, um perfil de rosto. era você, poderia ser você ou você quem errava na minha mente naquela hora sem eu perceber? e eu ainda me perco na incipiência das perguntas retóricas, meu deus. se era você ou não, isto é o que importa: as dobras, as aberturas, as sobras do que nós fomos emergiram com estrondo. abriram a carne do meu corpo, querendo extrair pela lateral e à força as costelas e seus conteúdos. ao ver o que poderia ser você, ao longe, feliz, uma escavação cruel abria meu dorso em busca do meu coração. as memórias eram as escavadoras, crendo que o batimento cardíaco eram, na leitura às avessas, os bips de um detector de metais. acho que encontraram só um coração farelento, uns laços desamarrados, uma carta de despedida. eu ainda me apego aquele momento-ouro, meu bem, a raridade daqueles dias em que eu poderia dizer, de perto e com doçura "meu amor". eu ainda procuro os sapateiros, quero cola, quero sola, quero mais umas longas caminhadas contigo. mas tudo o que ouço é que minhas preocupações não valem o trabalho e o que o melhor seria ver outras vitrines, experimentar outros modelos. e não procurar mais por aquilo que saiu de linha, nem por nostalgia, nem por um retorno do vintage.

ainda que fosse parecido, nunca seria igual.

.: marcio markendorf

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