my dear,
não tive culpa de você ter existido, estado aqui e me alimentado de grãos e unguento. eu apenas fui responsável por ser pássaro de praça, apegando-me à brevidade do gesto, às sementes de bem querer que pareciam cuidado & aproximação. se houve engano, foi das duas partes — da imprudente displicência de suas mãos, da minha fome imprudente.
mas certo é que meu imaginário voou mais longe, saltou grato por uma calçada de farelos em dia de calor. suas mãos, de outra sorte, voltaram para o bolso e só, sem demonstrar mais amor.
em meu sonho de pessoa humana, vi você cruzar a porta de casa, de madrugada, ficar muito pouco e retornar ao caos de fora da cabana. em seguida, meu montículo de abrigo ficou às voltas com fantasmas brancos, vestidos de lençol e olhos irregulares, como recortados por tesouras. o que levitava por trás dos lençóis era o desejo envergonhado, sofrendo de alguma culpa e me habitando os batentes. (agora mesmo penso ter visto uma capa, uns caninos, um cheiro de morte quando vi suas costas deixando a porta de entrada).
quando acordei, de alma lavada em lavanda e com cor azul perfumada, eu queria beber do abismo, o infinito; cair como pássaro ferido, sem ninho, sem força de vento em asa e assobio. agora: não sou, não sou, não sou. o sonho me purificou ou me mandou recados trágicos?
com os músculos cadentes, instáveis, o coração não foi amansado de ansiedade. passei horas na janela à espera do seu retorno do caos. como não veio, eu me vi como estorvo, um corvo esmagado na parede, de passagem, laminado. eu quis você, eu bem quis. como o corpo de um bem-te-vi cantando triste no arrebol atrás dos galhos.
porque esperei por dias você voltar, se insinuar, me querer por perto, fui virando o canto triste de pássaro urutau, com disfarce de pedra e casca de árvore, à noite. a espessura do seu antigo nome emagreceu, passou por baixo da porta, um vão fino, um papel sem mel. murcharam os afetos, inflou o pathos — um lago inteiro de pathos insensíveis grasnando durante a noite límpida dos meus sonhos. a percussão do pathos com você tocando, invisível, uns pratos de bateria. enlameado de melancolia, joão-de-barro, fechei-me por dentro da própria moradia, e, no escuro do emparedamento, sem dar um pio, soube que a pior intempérie não era a chuva ou o vento, mas o pressentimento do óbvio e do tolo. a asfixia de casa fechada, de saber improvável o retorno, de amargar o entorno do ouvido com as canções que escolhi para seu rádio. amador.
como eu pude ignorar os sinais da terra? a pele podre, os ossos, a cabeça mutilada — um pinguim pequeno morto na praia era um presságio, um mau agouro. não haveria nunca como você amar um corpo contra a luz, de frente para uma lua gorda saindo do mar. e as fotografias do invisível: umas paisagens destruídas, resistentes a existir como desenho, como recordação de cor & salteado. você quis me esquecer nas imagens — e pulverizou a lembrança, sem dó ou piedade. só vi o rastro prateado da lesma, a ausência da lesma, o fantasma do seu corpo. como um pássaro quieto e o signo inquietante do que é passado, do que é morto, roto.
você me deixou, sim, com a experiência do ar, do vácuo. você me deixou sim. e eu fiquei juntando os cacos do subjuntivo ao rés do chão, olhando para suas mãos dentro do bolso, olhando para suas costas de colosso, rochedo, pedra — nunca mais crendo, nunca mais querendo. as mãos, o farelo, o alpiste. o canto de devoração.
resta-me dizer, de longe, inclusive de mim:
o coração é uma andorinha, sozinha, voando alto em direção a um sol de fogo.
.: marcio markendorf
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