22.3.20

carta da quarentena



honey,

os correios pararam, você sabe. não tem mais carta chegando-saindo, nem sei mais como me achegar a você, se ainda dá tempo. há uma outra cidade se desenhando, cheia de montes, portas, cercas vivas, areia movediça. algo de pantanoso também, sem deixar de ser poético e pastoso ao mesmo tempo. essa cidade do desenho a gente não conhece mais, é outra coisa, talvez nem ilha mais seja. parece mesmo é que estamos em um diorama, personagens estáticos em uma cena. ou será que nós estamos mudando junto, sem perceber o roçar os serrotes e a violência dos martelos? um braço virou tapete; outro, se fez carpete; as costas, um escritório; a cabeça, uma parede de drywall. queria ao menos virar jardim botânico, não essa alvenaria funcional, acho que só com gentes passeando por mim eu me sentiria menos só. não é assim que você se sente também, baby, apesar de toda essa fotografia hipster, desses elogios de fogo descendo das bocas até os pés? faz tempo que me perguntou, mas, sim, eu penso na hipótese de um cataclismo - apenas não era assim que eu fantasiava não, culpa de tanta poltrona de cinema, sessão só eu, nem te avisei (sabia que não ia querer, só importavam os poemas daquele cá entre nós, tanto que resmunguei baixinho um convite que nunca fiz, voltei da tua janela com dois tickets e um coração na mão). a culpa não é tão somente minha, não me ateste esta exclusividade: eu tentei uma vez falar sobre o assunto, estávamos num bar, os pés sujos na rua, aborreci você, me disse que eu dava palestrinha, ar professoral, distante. fiquei com um pouco de mágoa, virei um copo de cerveja morna, virei a cara. era minha filosofia do cataclismo que eu queria te contar, a história da massa crítica. vesti a roupa de volta porque o momento não dava para nudez de alma. então você tirou as luvas de pelica, deu um estalo no ar e arrematou: mais me preocupa salvar os meus, tem tantos querendo pular das janelas, e os prédios aqui são altos, você sabe, não sabe? desculpe não quero a filosofia, só quero os afetos, deixa de lado os escudos. fiquei em silêncio porque podia ser verdade isso que disse. pareceu pequeno o que fiz, mas quando você vestiu a poesia das ruas os olhos não mais se olhavam. foi tempo isso, antes desses carros da polícia circulando os bairros, dessas mensagens de 'voltem para suas casas', algo ostensivo, militar. ainda não há escombros, a cidade não está ruindo, mas mesmo que houvesse, não sei o que levaria primeiro. é difícil fazer algo com a espada de dâmocles na cabeça, ou faço como tu sem o saber: dramatizo trincos de portas. hoje, mesmo de sol alto, a cidade está escura. volta e meia vou até a sacada, pegar um ar, dá uma vontade de fumar, dá uma vontade de chorar olhando a metamorfose do mapa. não dá no seu peito também um engasgo, uma tontura, uma vontade de vomitar? eu tenho tudo isso se vejo uma pessoa caminhando sozinha, ou com um cachorro, ou outra pessoa triste, como eu, meio edward hopper, na janela do prédio em frente. faz tempo o correio parou, mas ainda escrevo carta. uma vaga esperança de que estas palavas te encontrem e bem.

Um comentário:

Unknown disse...

TOP FIVE:
'essa cidade do desenho a gente não conhece mais, é outra coisa, talvez nem ilha mais seja'
'eu tentei uma vez falar sobre o assunto, estávamos num bar, os pés sujos na rua, aborreci você, me disse que eu dava palestrinha, ar professoral, distante. fiquei com um pouco de mágoa, virei um copo de cerveja morna, virei a cara'
'era minha filosofia do cataclismo que eu queria te contar, a história da massa crítica.'
'ainda não há escombros, a cidade não está ruindo, mas mesmo que houvesse, não sei o que levaria primeiro'
'uma vaga esperança de que estas palavas te encontrem e bem'

Adorei ler ao som da Sagrado Coração, do Legião.

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