19.11.06

correspondência completa.



my dear,

chove a cântaros. mas para encher os cântaros de chuva, leva algum tempo. a chuva é fina. daqui de dentro penso sem parar em você. viro meu rosto e olho a janela. vez ou outra escorre uma gota de chuva colada no vidro, colidindo com outras gotas, fazendo um pequeno rio que desce num risco rápido. a vizinha da frente nunca abre as persianas. exceto quando é dia de faxina e é a empregada que cabe tal ousadia. e mesmo assim, ela nunca me olha. deitado na cama, olhando a chuva, sinto meu lençol novo de algodão, azul celeste feito manto de virgem maria. e chove como se há três dias. chove. fiquei pensando em tomar banho de chuva lá fora. e me deu vontade de te arrastar da cama para caminhar comigo nas ruas, se demorando nessa chuva demorada. plano panorâmico, nós na praia, brincando de correr, de se jogar nas ondas, de assustar com teu medo de estrelas-do-mar. chove. acho que alguma coisa vai mudando por dentro. toco nos lençóis, está vazio e quente ainda do meu sono. alguém em algum lugar toca uma citarra. é uma melodia triste. me lembra de uma infância. triste. mas assim em conjunto, chuva e citarra, me lembram de uma tristeza muito maior, que é a de viver apenas o sonho. daqui de dentro sonho sem parar com você. cada risco de chuva na janela é um dos nossos tempos que eu invento sozinho. agora que você se foi, nem sei dizer nada. reclamou de calor, foi mergulhar o corpo na piscina e dar risadas gostosas de cloro e sol quente. duvido que pense em mim no exato momento que o faço na contramão. nem sei dizer, apenas sei sentir os três dias que chovem. por dentro, por fora. o tempo mudou, você mudou no tempo. os sonhos que eu tinha eram futuro do presente. os teus, agora, desconfio, estão mais para futuro do pretérito do que qualquer outra conjugação. nem há espaço para o subjuntivo. invento, então, olhos vermelhos de tanto chorar, choros longos de chuva dolorida e despedida. o coração chora, o coração chove. o meu. do teu não sei mais. sabia. e agora essa incerteza que me arrepia por dentro, que nem puxando os edredons até o queixo, deixo de sentir esse frio. eu falei de verdade. eu te amo, num sussurro. eu te amo, imperativo. eu te amo, num grito. outro risco de água. um sonho se foi. você se foi. vai voltar ainda? (daqui de dentro penso sem parar nos gatos pingados. e nas garras de gato que me arranham os sonhos por dentro)
p.s. o mais triste de se ir embora é não fazer malas nem deixar aviso.

Um comentário:

Anônimo disse...

Dá para ver bem. Mas precisei ler outras vezes, primeiro porque gosto, segundo, porque pensei que uma figura tinha a ver com cântaro/apartamento...Estás vendo no que dá esse contato entre quem esvreve e quem lê? Mas está tudo certo agora. Sem confusão. Espero.

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