20.3.08

breve estada da barbárie



dear,

eu não preciso de muito. apenas o necessário. acho que me acostumei demasiado cedo com a miséria do mundo. não consigo me acostumar comigo mesmo. muito menos com a erosão do mar, que constrói degraus por onde eu piso, muito menos com o mergulho do relâmpago em campo aberto, destruindo tudo e tão próximo. eu não exijo nada em troca. por que me censura, então, por eu querer viver essa forma de êxtase estranho e clandestino? tenho comigo essa felicidade que me faz rir e me faz chorar ao mesmo tempo. tenho-a só para mim, tão só. e se eu choro não é exatamente porque eu estou triste, mas porque me sinto irresponsável e ciumento. não preciso que esteja comigo para que eu esteja feliz. preciso apenas que esteja bem. talvez me pergunte qual a razão do desejo, se nada quero de você. ora, não sabia que o sonho e o desejo são feitos da matéria irrealizada e irrealizável? apenas aquilo que nos faz falta - ou que constitui uma falta [o espaço, o intervalo, a lacuna] - tem a capacidade de movimentar as engrenagens do mundo e nos manter vivos com um pouco de sentido. não importa se o desejo será realizado ou não. o mais importante é a idéia de sua realização. querer. eu quero você, mas não estou pronto para ser amado. você quer o rosto desconhecido, mas não está disposto a amar ninguém. vê como estamos tão próximos e tão distantes? mas não tenha medo. não vou tocar seu corpo agora, nem no fim da noite, nem amanhã ou depois. eu tenho medo. embora pareça tão convicto da película que nos separa, há milésimos de segundo em que não consigo controlar o furor da fome selvagem, e nos quais quase deixo o coração aplacar a sede do desejo insatisfeito. nesse curto intervalo de barbárie - o tempo de um pensamento - eu quero traduzir simultaneamente a sua língua na minha, sem palavras de ordem, verborragia ou adjetivos hesitantes; quero deslizar o único idioma que sei pelo seu corpo, mostrar que o sujeito do desejo existe, mesmo no silêncio mais intenso, mesmo nas vozes mais fragmentadas do discurso; quero comunicar os fonemas surdos que os beijos na tua pele traduzem e capturam com a impaciência de um analfabeto; quero inventar de querer a linguagem do corpo entre dois cegos que seriam eu e você. segundos depois, produzindo o trovão, dissipo a última leva de ousadia. no punhado de horas subseqüente retorno para a civilização, sem avidez alguma. e sem esperar nada de você. [o que soa tão triste, uma vez que o próprio desejo é aterrador e resistente. em ambos os lados da cidade].

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