14.1.10

as nuvens

dear,
chorei a tarde toda. esta, como tantas outras, repetindo-se. mas chorei mais devagar do que sempre, esvaziando pouco a pouco as coisas de mim. quase como quem diminui o oceano às colheradas. vi meu corpo emagrecendo de substância, adoecendo. não era culpa da fome desta vez. pelo contrário: descobri que há algo de equivocado na solidão de quem não come a carne e o espírito da carne. descobri algo errado em mim e nos relicários que mantinha. todos no alto, cerrados pela neblina e pelo vento forte. impossíveis de alcançar, de tirar deles a pureza, de marcar em sua montanha um traço ou vestígio de presença humana. foi uma iluminação amarga, difícil de engolir, fácil de me abrir um corte e retirar aquele sopro de quem consola, de quem esfria o calor da dor. o culpado fui eu, fui eu. a contragosto compreendi a pequena casa de palha que meu corpo habita: só o real é amor. de costas olho o passado dos meus passos e vejo: até então acreditava em fábulas, nas histórias que me contaram e nas próprias que inventei. até então eu eliminava do romance a coisa prosaica, o cotidiano das almas que compartilham a água e a sombra fresca das palmeiras. queria eliminar tudo o que fosse apenas dois corpos lado a lado, incomunicáveis, silenciosos e de um deserto insuportável. ao mesmo tempo, pelo mesmo procedimento, eu desaparecia da cartografia. de repente era eu quem desenhava mapas de um estranho e tortuoso mundo, com traçados finos para caminhos que levavam a lugares muito bonitos. e longínquos. e vivos apenas na literatura. por isso fiz do choro uma duração dolorosa sobre os simulacros da vida. chorei minha falta de paciência, meu descaso, minha crença infantil de que o amor é realmente possível. chorei a liberdade da literatura em fazer nos perder para sempre no final infeliz. o final que existe e que só pode ser. chorei minhas recusas às propostas de verdade, aos amores de verdade, ao que eu já poderia ter vivido. e não. ainda não consigo me arrepender. apenas lamento a impossibilidade de desejar outra coisa que não seja vitória, outra coisa que não seja a sensação que queima, que não seja a flutuação das nuvens abaixo dos meus pés. [eu quero e tenho fome].

Um comentário:

Anônimo disse...

Que pena não querer acreditar no momento certo... Que triste relembrar um passado doloroso e não aceitar o que dele foi feito... não aceitei, nunca vou aceitar, me remoo e naõ compreendo por que não falar? por que não falei...

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