incorrespondências

honey:

comecei escrevendo com tanta raiva que tudo tornou-se ininteligível. das palavras magoadas passei ao discurso da pedra, do aço, dos gritos, uivos e grunhidos. se acaso pudesse triunfar o amor, eu não hesitaria um só momento em te ver. viveria o frenesi, a vertigem, a polpa do lado de dentro. se ainda pudesse o bem-querer retornar a esta casa abandonada, seria apenas como força de uma invasão, a tomada de uma cidadela. mas nem mesmo deus poderia fundir o campo e a cidade - estes lugares distintos nos quais vivemos. além do espaço, nosso tempo é outro. e por mais que afirme e faça negar, é apenas na penugem da pele que teu desejo habita. acreditando que houvesse algo mais, escavei com as mãos o interior de um corpo oco.  ao saber-me no vazio, chorei demoradamente na solidão. também corei um pouco de minha fragilidade. cheguei a confundir o coléra com o amor, confundir a cólera com a dor. por isso escrevi em meio a um misto de febre, ânsia, mal-estar. mal-estamos desde há algum tempo. talvez porque nada seja mais difícil que o amor. deixo-te ir embora porque perdeu o significado de amor. e negar meus próprios quereres para permanecer nisto seria ensurdecer minha natureza e, negando-me, meus pés nunca mais voltariam a tocar o chão. o que tinha feito até agora era empurrar as lembranças de ti para os escombros do pensamento, embaixo da massa amorfa de tudo que luto para esquecer. mas agora, amor, depois de suas últimas palavras sem sentido, da sua vida sem sentido algum, eu saí da quarentena e afundei de vez o barco. sem outras ameaças ou avisos. saiba que não é preciso voltar. eu posso muito bem substituir as coisas, eu posso muito bem substituir você e seu amor-coisa. eu muito mais queria fazer retorno a um, dois, três meses antes de hoje, para não precisar nunca ter conhecido o que é. queria entrar na máquina do tempo e impedir que estivéssemos um dia no mesmo lugar, impedir que vivêssemos essa junção em separado. assim eu nunca escreveria estas palavras, nem nunca me sentiria tão só quanto hoje.