12.12.10

o rio das mortes: silêncio cruel


eu, tu:

talvez seja a primeira vez que escreva para mim mesmo. antes escrevia para ti como se comigo falasse, ainda sabendo que estas cartas nunca chegariam ao destino. mas hoje falo apenas com o tu a quem me dirijo, sendo tu o eu que aqui repousa. é quase como um diário, uma anotação, um solilóquio. basta em que pensar. o que queria dizer a mim é isto: tenho medo de nos encontrarmos outra vez pelas ruas. seria triste nos olharmos como quem se coloca diante do ignorado, como quem, tendo na memória aquele corpo familiar, é atravessado por um estranhamento completo. provavelmente recordaríamos a doçura do antes e o final, ainda sem um adjetivo definido. não entenderíamos por que ou quem fechou a porta primeiro. e, nessa hesitação, cruzaríamos o caminho como quem tropeça em um morto. bem, de um modo ou de outro, já estamos mortos mesmo. e tropeçando. mas um pensamento mais triste ainda seria: nos encontrarmos sob a mesma estranheza, mas não advinhando nunca por que o coração se agitou tanto. e haveria um pesar pelo tempo perdido e, depois, a miséria interior. seguirá-se a isso, quem sabe, um longo som de fechar de portas.

esta noite tenho saudades da paisagem selvagem, vontade de retornar à áfrica, penetrar com fuzil a carne do tigre. o que faço para compensar? o mistério da papoula é o próprio amor. o silêncio, no entanto, é muito cruel. tudo é sinal de que a inocência chegou ao fim. só tenho cá as mortes, o rio das mortes, correndo e revirando cadáveres dentro de mim.

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