20.3.13

amores sanguinários

honey,

não pude fazer outra coisa senão deitar no chão e morrer.
chovia sobre o morto. pode-se dizer que chovia no molhado, pois já era um corpo ensanguentado. caminhei um pouco para longe e assim, à distância, era até triste de ver. fiquei arrependido, arrepiado, e voltei até os pés daquele monturo. quanto mais eu olhava, mais me perguntava o que era eu e o que era tábua. o problema do espiritismo é essa miopia, esse não saber pegar sozinho nem na caneta e ter que depender do outro para tudo. mas com o tempo eu me acostumei e deu para ver o que era eu mesmo. 'tão pouco solene esse meu funeral', resmunguei baixinho. fiquei pensando quem é que recolhe esses corpos. deixar por aqui não dá. mais hora menos hora a gente acaba tropeçando neles. não deve ser bom ver um rosto apodrecendo, muito menos esse. e era um rosto tão bonito. não digo no sentido físico, claro. quando a gente se apaixona, fica com uma bonita cara de besta. o problema é esse. é isso, o problema: o que você está vendo aqui. quer dizer, o que eu estou vendo porque nem quando eu estava vivo você via. e eu tentei de todos os jeitos que você me visse. eu relutei bastante até sentir que o melhor mesmo era morrer. então deixei aquele corpo apaixonado ali na rua para poder seguir em frente, sem um peso morto nas costas. quer dizer, estou aqui ainda, com dó dele, justo porque não é sempre que a gente se apaixona. o mundo já é tão complicado e não acho justo fazer do amor também uma crueldade. foram precisos alguns tiros nesse corpo aqui. não quis acertar o rosto para não ficar desfigurado. eu quis acertar só no peito, que era uma forma rápida de aceitar o que não se passava no seu. agora passou. agora, do jeito que estou, eu não vejo mais você. até dá para viver com a culpa de ter matado a si mesmo - ou de ter morrido, não sei. o que não dava para fazer era continuar seguindo apaixonado por quem mal-te-vê. isso não dava mais. e agora, depois de morto, duas quadras depois do corpo, eu posso dizer: seu rosto foi o que mais mudou.

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