17.6.14

o coração intocável

honey,

como algo que estala de repente, uma voz vinda do oriente, a epifania de um doente: finalmente eu compreendi. ou pensei ter sido agraciado de iluminação. não acredito nunca disso antes me haver passado diante dos olhos. admiro a esperteza do espírito em cobrir os rastros mais óbvios, e deixar sinais e pontas que levam a nada e lugar algures. quem sabe só a um arrepio só, a um desconfio de qualquer coisa, a um desconforto de almas nada lavadas. esta tarde compreendi que amar você é a única forma possível de impedir que me amem. contraditório, não? também pensei a mesma coisa, antes dos primeiros momentos, antes de desabar no choro, sem querer se abafar dos olhares da rua, antes de desabar na rua, esgazeando meu próprio olhar para o coro de vozes de soslaio. era verdade, amor. sempre estivera ali a verdade, repetindo os recados telegráficos que eu ignorava e continuo a olhar displicentemente. as notas dizem: eu apenas amo você porque não quero, de verdade, que amem a mim. amando-te assim, eu levanto muralhas que não posso transpor, muradas tão altas que nem se pode ver quem dentro está. mas não desejo eu o amor com todas as forças e fraquezas, todos os júbilos e todo o mal-estar? era o que eu dizia, não o que eu queria dizer. eu tenho medo, amor, tenho tanto medo de que, finalmente, me amem. como descrever esta sensação? é o pressentimento ameaçador de que poderiam me destruir se eu escapasse do meu esconderijo. ah, bem sei eu: o amor poderia ser tão violento que me mataria. é o que suponho. por isso, não experimentá-lo de perto é a única garantia que tenho de sobreviver. coloco-te nos altares e em devoção visito tuas libações, sem sequer levantar os olhos nas silenciosas orações com as quais te visto. coloco-te acima de mim porque a fantasia não me machuca tanto quanto machucariam as homeopáticas verdades do cotidiano. sendo meu coração deste modo medroso, eu amo às distâncias, eu só amo aos extravios. mando cartas para você que me ignora e nada sabe e nem nunca saberá. estes escritos nunca hão de ver um correio, um selo, um carteiro qualquer. nascem missiva, colóquio de ausente para ausente, apenas para morrer como murmúrio das encostas. eu amo à distância para manter minha identidade, para preservar o que eu sou. tenho tanto TANTO medo da transmutação de mim, da negociação de afetos, da sobreposição de conjuntos, do ponto cego de dois andando juntos na mesma direção. você sabe: eu já tive outras pessoas antes. e nunca as amei. apenas deixei que chegassem mais perto e fossem juntando suas coisas no canto, sem que nada se misturasse ao que era meu. eu resistia em mudar, eu insistia em ordenar. eu queria manter autoridade sobre tudo. eu que amava a ideia de deixar-me levar, era justamente quem enrijecia cada passo. e, auxiliado por um compasso, fazia o desenho dos territórios possíveis no chão: isto é seu, isto é meu, não ultrapasse, não me abrace nesta hora. e me quedava como esfinge cansada, como ainda me quedo, tão opaco quanto um mistério, tão sério quanto um segredo. e os dias transcorriam tristes porque eu apenas me acostumava a uma indiferente presença , a um desequilíbrio do lado de fora da minha casa, debaixo da minha janela. eu te amo. eu te amo. e eu te amo porque não sei amar a mim, porque não sei amar o vir a ser de mim. de mim, sim. e de tu que tanto tenho medo que se achegue, me beije e me deixe ser outra coisa depois da cinza, depois do fogo fátuo, do fogo farto e depois das asas de ouro do final.

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