7.3.19

mercúrio retrógrado

my dear,

faz tanto tempo que não nos tocamos que as palavras trocaram de lugar. invertidas no sentido e na sintaxe, esconderam-se com receio das consequências. mas não eram investidas os recados deixados na secretária. pensei neles mais como delicadezas, pesa-papeis imateriais para não deixar as cartas com timbre voarem pela casa. pena que, por medo, os recados foram rasgados, nem chegaram a curtir e pegar sabor. eu não disse nada, apenas acenei com a cabeça, sem concordar. a intuição do mercúrio retrógrado já me dizia: era o nosso adeus. começaram as reformas pela casa. olhei pela última vez para lembrança daqueles dias de sol. todo o verão chegando trazendo mais histórias, avolumando uma trajetória que a gente pensava a dois. não deu certo por muitas razões, a gente sabe, as coisas do mundo nos imobilizavam. ninguém teve culpa, ninguém partiu, mas ficou a vontade da chegada a algum ponto. e, de repente, fomos nos separando, nos esquecendo, silenciando qualquer palavra pura. como mineradores cansados que abandonam uma mina, saímos sem nem levar as ferramentas. imagem triste do fim de um trabalho. ao mesmo tempo: a cena encarna a lembrança gloriosa de que, antes, encontrava-se ouro no olho da terra. os trabalhadores levantavam bem alto as peneiras e gritavam, gritavam quando olhavam no fundo uns dos outros. e era ouro pra mim, aquela canção. por fim, os calos arrebentaram, os músculos retesaram, as mãos abertas se soltaram fio a fio. a mina foi sendo deixada para trás, um lento e silencioso movimento retrógrado. então: vindo de lá, com as mãos abanando, recordando os papeis rasgados de agora, olho para trás como que pra frente. parece sem sentido o que digo, mas as palavras trocadas de lugar me deram esta liberdade. adeus, adeus, sou mais longe ainda daquele lugar temporário, o fundo do mundo onde nos encontrávamos. torna-se ouro preto o que eu cantava, torna-se o fim completo das minas gerais. restam tão só águas tranquilas, cheias de mercúrio, feridas embebidas em mercúrio-cromo.

.: marcio markendorf

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